15 junho 2006

As velhinhas e o ladrão.

*Os nomes foram alterados, para proteger a privacidade dos envolvidos.
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Dona Tetê já passava dos 70. Durante o dia, encontrava as amigas da terceira idade, e praticava seu footing. Era comum encontrá-la em horário comercial, de agasalho quentinho de algodão, correndo nos parques. Correndo é gentileza de minha parte. Nunca cronometrei, mas tenho a impressão de que ela correndo não era tão rápida quanto eu andando. Mas exercitar é que importa. Numas dessas tardes, conheceu um senhor da casa dos 80 e começou a namorar.

Arquiteta em atividade, era adepta de métodos antigos e hábitos excêntricos. Começava a meia-noite, e varava a madrugada debruçada sobre suas plantas numa antiga prancheta de desenho com arcaicas réguas "T" e esquadros. Nada de computador. Gostava de trabalhar somente com o ruído dos grilos e outros seres de hábitos noturnos, como os ladrões. Volta e meia ouvia de sua janela um desavisado sendo assaltado.

Sua alegria eram as paixões pelo seu príncipe encantado, e pelas viagens. Assim nossos caminhos se cruzaram. Ela foi indicada por uma "free-lancer" muito doida, que me conseguiu os clientes mais hilários no período que tive uma agência de turismo. Ainda escreverei sobre ela.

Dona Tetê era uma comédia. Suas viagens invariavelmente incluiam: 1- Uma parada num balneário elegante da Florida, Naples, onde morava a filha; 2- Alguma confusão.

Antes da viagem me atazanava ligando a cada 5 minutos pra saber se o hotel confirmou, se o carro alugado tem isso ou aquilo e como era mesmo os horarios dos vôos?. Ou aparecia e se plantava na minha frente aguardando as respostas. Com ela era sempre do mais barato. Tudo achava caro. E vivia consultando outras empresas pra comparar preços. Nunca fui de dar desconto, mas tampouco de cobrar a mais. Sempre o valor justo.

Certo dia, com a papelada de uma de suas viagens na mesa, ela perguntou o valor da passagem. 802 dólares eu lhe disse. Com olhar de ensaiado espanto retrucou: " Mas numa agência de São Paulo eles me fariam por 800 !!". Engoli em seco, e ja cansado de pechinchas, abri a gaveta, joguei toda a papelada dentro. E com ar de quem sinceramente entendia e concordava disparei:
"É, realmente uma diferença significativa. A senhora então, compre lá! " E fechei a gaveta. Não preciso dizer que ela comprou comigo. Economizou somente a lábia pra gastar com os lojistas estrangeiros.

Noutra ocasião, estava comigo quando o fax despejou uma confirmação. Era o hotel. E os gringos me fizeram o favor de colocar o preço líquido já descontada a comissão. Se Dona Tetê visse isso, ia querer pagar pelo valor estampado, e não haveria argumento no mundo que justificasse a ela eu ter que somar a minha comissão. Pra evitar que ela visse, segurei o fax contra o rosto como quem estivesse conferindo. Ela esticou a mão pra me tomar o papel. Ligeiro fui empurrando a cadeira pra trás, e ágil ela foi esticando o braço. Mais eu recuava, mais ela avançava. Quando me dei conta ja estava eu, em pé, espremido e encurralado contra a parede e ela de quatro. Isso mesmo, de quatro, em cima de minha mesa com o braço esticado parecendo uma onça prestes a dar o bote. Aceitei o inevitável. E nos segundos que antecederiam o desastre, tive uma idéia! Com a outra mão agarrei um pincel atômico de sobre a mesa. E enquanto esticava o fax na mesa, fingi marcar o local no papel onde estava a confirmação, cobrindo o valor com uma espessa camada de tinta. Ufa! Foi por pouco.

A grande comédia eu não assisti.

Lá se foi Dona Tetê e suas duas amigas pros Estados Unidos. No roteiro, um congresso de Arquitetura em Chicago e aquela passadinha básica pra rever a filha. Ela surpreendeu exigindo o Chicago Hilton, não pelo preço, mas pela proximidade ao tal congresso. Em compensação, alugou o carro mais econômico, por mais que eu protestasse que nao seria o suficiente pra todas, e que trocar de carro lá seria mais caro do que ja sair com um maior reservado desde o Brasil. Fui voto vencido.

Na volta da viagem, Dona Tetê não deu as caras. Mas uma das amigas me visitou. Contou que logo na chegada, as três senhoras e suas bagagens não cabiam dentro do carro alugado. Pra não deixar nem bagagem nem passageiras pelo caminho pagaram uma grande diferença por um maior. Já estressadas, chegaram ao hotel. Onde Dona Tetê protagonizou umas das maiores confusões que os americanos já viram, com exceção talvez das que o Bin Laden estrelou.

Ela quase pôs o hotel abaixo alegando que tinham roubado uma de suas malas. Aos berros estridentes, com sua potente voz aguda, destratou bell boys, bell captains e managers, chamou a polícia, armou "o" barraco. Enquanto as amigas assistiam acabrunhadas, de um canto seguro. A confusão se desfez quando, com polícia e toda diretoria do hotel reunida no lobby pra acalmar a fúria assassina da velhinha, alguem ligou do aeroporto avisando que ela esquecera a mala por lá. As três precisaram de mil mãos pra juntar suas caras e protejer os rostos de vergonha. Mal conseguiam encarar os funcionários do hotel durante a estadia, de puro e bom constrangimento.

Não me espantei com a atitude de minha cliente, pois conhecia bem a fera. Espanto mesmo foi com a amiga me dizendo que isso não foi nada comparado com ... o "assalto".

O Assalto.

Quando chegaram a Florida o episódio de Chicago já estava absorvido e as velhinhas eram só alegria. Como todo bom brasileiro, não escondiam serem turistas. Paravam o carro, abarrotado com toda a muamba que podiam carregar, em cada esquina, e abriam no para-brisa os grandes mapas que levavam pra não se perder. O destino, e um mapa muito do mal lido, as levaram prum bairro cubano, que pra quem conhece Miami, sabe que não fica nada a dever ao nosso velho Rio de Janeiro.

Depois de pararem num posto de auto-atendimento e terem dado um belo espetáculo de pastelão tentando fazer a bomba de combustivel funcionar, entrararam no carro mas permaneceram estacionadas. Dona Tetê ao volante, abriram os malditos mapas.

Velhinhas, com as bolsas no colo, os vidros abertos, em Miami, em bairro cubano, já escuro, em carro alugado, carregado de muamba, com cara e crachá de turista. Um assaltante chamaria esta cena de uma visão do paraíso. Mas não foi um assaltante. Foi ladrão de galinha mesmo.

O cara, negro e enorme, chegou pelo lado do passageiro como se fosse se oferecer pra dar alguma informação. E não teve dúvidas em meter a mão pelo vão da janela aberta e agarrar a bolsa no colo da senhora. A qual, surpreendentemente, também não teve dúvidas em fechar a janela na mesma hora prendendo o braço dele. E menos dúvidas teve ainda Dona Tetê, em dar a partida e arrancar. E lá foram elas, que beleza !. Em desabalada carreira pelas ruas escuras arrastando um negão pendurado na porta, e, a esta altura, já todo quebrado.

Mesmo considerando que elas foram paradas pela polícia, provavelmente sob a acusação de estarem sequestrando um cidadão americano, e que acabaram na delegacia explicando que focinho de porco não é tomada, até que a noite não acabou tão mal. E foi isso.

Ahh ... Saudades da Dona Tetê! A esta altura já deve ter casado.

11 junho 2006

The sound of music.

Depois de milhares de reprises nas sessões da tarde da vida, não há quem não lembre da Julie Andrews correndo, cantando e dançando pelos Alpes austríacos no clássico "A Noviça Rebelde" de 1965.

O cenário é de matar. Amplas pastagens emolduradas por montanhas de neves eternas. Pra quem é chegado num turismo natureba, um verdadeiro chamado bucólico e selvagem; citando meu amigo Jack London, cujo "Chamado Selvagem" foi um dos livros de cabeceira dos meus tempos de aventureiro pré-adolescente.

Mas o assunto aqui são os Alpes suiços. Afinal, tem que ser insensível pra preferir se acotovelar nas ruas de comércio de Zurich ou Geneve, podendo caminhar pelos montes com os maçicos nevados se erguendo a sua volta. Além da aproveitar da paisagem de tirar o fôlego, se você for mulher ou meio boiola, pode até imitar os passinhos da noviça rebelde entoando a famosa musiquinha do filme, saltitando pelos campos.

Gracinhas a parte, tem várias maneiras de se aproveitar um dias nas montanhas, mas só conheço uma, e é a que vou narrar aqui.

Quem subiu as neves eternas do Jungfrau pela cremalheira (que dá pra definir como uma espécie de trem alpinista que corre sobre trilhos especiais), passou por Kleine Scheidegg, um pequeno vilarejo composto não mais que por uma meia dúzia construções circundando um grande hotel-chalé. Fica a mais de dois mil metros de altitude e oferece um panorama fantástico dos Alpes. O que pouca gente sabe, ja que a maioria dos turistas sequer desce da cremalheira na ida e na volta, é que a pequena vila por si só já é uma atração a se curtir.

Sem desmerecer o passeio as geleiras, pois pra quem não é familiarizado com neve, deve ser fantastico caminhar no gelo desértico, Kleine Scheidegg oferece mais. Principalmente se estivermos perto do verão, ha belas caminhadas a se fazer, por paisagens cinematográficas. A cidade é ponto de partida pra os adeptos do trekking. A poucos minutos de caminhada você já se sente o rei do mundo, mais ainda que o Leonardo de Caprio na proa do Titanic. A monumental cordilheira imponente ante seus olhos, sob um clima agradavel, ainda que você encontre acumulos de neve aqui e ali. Resquicios de eventuais nevascas noturnas.

Fui acompanhado de uma amiga, Claudine, suiça de Bern, que eu havia conhecido dois anos antes na subida a Machu Pichu no Peru, e que gentilmente me hospedou na capital. A idéia do piquenique foi dela, e o ciumento maridão italiano, é óbvio que não nos permitiria uma dia a sós nas montanhas, um cenário tão romântico. Maior comédia. Ele foi junto. É um sujeito muito falante e simpático, de firmes convicções políticas, apsar de viver, e gostar de viver, num país alegadamente neutro. O casal me proporcionou um dos mais belos passeios da minha vida, que foi este piquenique nas montanhas. As fotos falam por si.

Apaixonado por arquitetura, perdi algum tempo observando o cuidadoso trabalho artesanal das telhas de madeira, dispostas em escamas, umas sobre as outras, compondo o telhado dos chalés. E após percorrer algumas trilhas e experimentar alguns bons tombos na neve, encerramos o passeio esperando a cremalheira de volta saboreando um chocolate quente na varanda de um pequeno bar com uma vista espetacular.

E antes que algum engraçadinho pergunte. Não, não cantamos nem dançamos "The sound of music".

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Como chegar:
A cremalheira para o Jungfrau parte de Grundewald Grund nas cercanias de Interlaken, e é uma ferrovia particular. Pode-se atingir Interlaken a partir das principais cidades suiças, porém a mais próxima é Berna.


Fotos: São minhas as do panorama da vila de Kleine Scheidegg e do telhado em madeira. A que apareço ao longe contemplando as montanhas é cortesia de minha amiga Claudine.